23 outubro 2012

A comunhão do Zé


Outro dia assisti o filme "Caminho das nuvens" do Vicente Amorim. O filme de 2003 conta a história de um homem desempregado, personagem do Wagner Moura, que sai da Paraíba para o Rio de Janeiro de bicicleta com a mulher e os cinco filhos em busca de um emprego que lhe pague o salário de mil reais por mês.

Achei que seria útil para ilustrar para as minhas filhas uma realidade que elas não conhecem e quem sabe promover uma reflexão sobre valores e necessidades.

Pensei que talvez elas não  fossem se interessar e facilmente abandonariam o enredo por outros programas em uma tarde de Domingo. Mas que nada, elas ficaram vidradas, fazendo perguntas sem parar e mudando de expressão a cada cena.

Percebi então que o efeito causado por aquele filme na vida delas era parecido com o efeito causado pelos filmes que ilustravam a vida como a delas na minha infância.

Como assim?

Eu vim de Vitória da Conquista na Bahia e tive o privilégio de ter um um pai sertanejo que achava que a sua roça na caatinga era o melhor lugar do mundo e para lá ele me levava em todas as oportunidades. A fazenda se chamava Lagoa de pedras com muitas pedras e quase nenhuma lagoa. Meu pai era muito feliz ali, cozinhava para mim, me levava para ver as mangas, me ensinava os nomes dos capins e deixava eu dirigir o carro da cancela até a casa, trocando de lugar em todos os mata-burros.

Lá morava o Zé Vermelho, o vaqueiro que trabalhava para ele. Tinha esse nome por ser o único loiro de olhos azuis na região, vivia com a sua mulher Anália e eu posso escrever quinhentas páginas sobre eles. Na casa deles eu aprendi como se vive sem energia elétrica e sem água encanada, estava lá quando Anália pariu o seu filho caçula com uma parteira no quarto quase em silêncio e quando ela chorou escandalosamente pela perda do quinto filho em um aborto espontâneo. Parece que estava adivinhando pois depois disso Anália nunca mais engravidou. Lá fui madrinha de casamento aos treze anos, lá eu senti medo do lobisomem todas as sexta-feiras da paixão. Lá eu vi Sirlene, a filha mais velha, subir em um coqueiro em menos de um minuto e logo descer trazendo vários ouricuris, aqueles coquinhos secos que servem para fazer colar. Ela quebrava-os em uma pedra e sempre me dava os maiores, ia escolhendo e falando sem parar, muito esperta, enquanto ajeitava o Joelson, seu irmãozinho caçula, em um lado da sua cintura.

Adorava observar daquela família, passava horas com eles, ouvindo suas histórias e crenças sem nunca contesta-las, acho que eu sentia a preciosidade que havia naquela forma simples de viver a vida.

Lembro-me de um fim de tarde singelo e especial.

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Todas as Segundas-feiras Zé Vermelho ia para cidade mais próxima, chamada Belo Campo, para a feira. Ia à cavalo quando dava, de carona na carroceria de um caminhão ou à pé. Em três segundas no mês ele comprava fiado e na quarta levava o seu salário mínimo para pagar a conta.

Chegava trazendo na sacola e no imbornal - uma espécie bolsa de pano à tira-colo - alguns mantimentos. Eles plantavam o que podiam, o café era torrado e moído em casa e o feijão ficava em um saco grande na sala. Era um feijão de terceira, possivelmente castigado pelo clima das redondezas, mas nem por isso menos importante. Era tirado com cautela com uma cuia por Anália para o almoço de cada dia. Ela servia dois pratos para os quatro filhos, com duas colheres em cada um. Cada um era forrado com o feijão cozido do saco, duas colheres grandes de arroz bem grudado, meio ovo frito e a gordura do ovo por cima. Depois era só colocar farinha. Nunca vi sobrar um farelo e nunca vi ninguém pedir mais.

Naquele dia Zé trazia uma lata de óleo, arroz, um pedacinho de charque, uma pedra de sabão grande e um saco de pão que devia ter uns doze pães para toda a semana daquela família. Esse momento era esperado, as crianças sabiam que ele trazia balas no bolso.

Eu estava no portão da cerca de arame farpado que cercava a casa, saindo de lá. Quando me avistou de longe Zé me chamou com uma alegria ainda maior que a de costume, certamente motivada por algumas doses de pinga:

- Val! Val!! Vem cá! Ói o que eu truxe procê! - Ele rasgou um pedaço do papelão do saco, pegou um pão e estirou o braço em minha direção. A outra mão foi para o bolso e catou cinco daquelas balas duras.

- Precisa não Zé -  eu disse desconcertada, sabia que aquilo faria falta.

- Mas eu truxe procê, pega fia! - Falou em um tom incisivo e comovente.

- Mas tô indo jantar, painho fez comida...

- Pega moça! Anália interrompeu estalando a língua nos dentes, como se recriminasse a minha timidez.

Nesse momento olhei para o Zé com o braço esticado e percebi em tempo que aquilo era muito importante para eles.

Peguei o pão e fiz questão de comer na frente deles e naquele momento eu não pensei na manteiga que outrora me faria falta, na minha mão suja, na falta que iria fazer pros meninos. Pensei só na generosidade de Zé, pensei na comunhão, em como o Zé era um cristão de verdade, essa foi a celebração de ceia mais linda que já vivi.

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Mesmo em uma situação financeira bem melhor do que a do Zé, para mim quando criança os Estados Unidos, a Disney World, o luxo e a tecnologia eram tão surpreendentes e improváveis como o carro de "De volta para o futuro" as piruetas do avião de "Top gun" ou as bicicletas com poderes do "E.T."

E para as minhas filhas que conhecem os melhores parques, a internet, os programas e os filmes com tantos efeitos especiais, o que causa espanto e curiosidade é a situação do personagem Romão do filme,  que poderia ser o Zé Vermelho.

Comecei a imaginar se nós brincássemos, as nossas crianças, eu criança com elas agora. Com certeza eu ficaria insegura como costumava ficar quando estava perto de crianças muito paparicadas.

Tsc, tsc. Não sabia eu de quão rica eu era, e tão interessante pelo que observava e experimentava da vida como ela é, com gente de verdade como o Zé Vermelho e a sua família.

Talvez as minhas filhas dessem um banho em mim ao manipular os seus i-pods arrastando os dedos ou ao cantar as músicas das suas cantoras favoritas com seu inglês fluente.

Mas eu sei do que tive e que para elas falta, se eu pudesse e me sentisse segura para isso, eu daria para eles doses homeopáticas de experiência na família de Zé Vermelho, do que me fez aprender a olhar para o outro de verdade, do que me fez aprender a ouvir, a esperar, a valorizar o simples, a fazer quando não tem quem faça, do que me ensinou a dividir e a agradecer.

Assim tento seguir atenta para os riscos desta vida de filme de Hollywood, e muitas vezes erro a mão na medida, sempre confusa por ter que decidir o que fazer sozinha. Mas procuro nunca me perder dela, da menina na roça, feliz por sentir o cheiro do café no fogão de lenha enquanto ajudava a passar sabão de côco no bebê sentado na bacia de alumínio. Alí estava eu pegando uma carona com Zé Vermelho no seu caminho nas nuvens, em sua lagoa de pedras.




11 comentários:

  1. Tambem tenho experiencias bem parecidas a essas, e acho que por isso, sou tao feliz!!!

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  2. Que texto lindo, minha Mamys!!! Fiquei muito emocionada com cada palavra vinda desse seu coracao de ouro!! Nao tenho mais o que falar.... estou apenas me transportando no tempo da minha infancia, nas ferias passadas na Fazenda da minha Vo e no convivio de pessoas como as da sua infancia. Muito obrigada por me proporcionar essa maravilhosa viagem no tempo!!! Que bom ter os seus textos Incriveis novamente!!! Um beijo enorme, com o carinho de sempre, Paulinha.

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  3. Valzinha, vc proporciona isto tambêm para suas filhas, promovendo a integração delas com as crianças do Shangri, das suas funcionárias, das creches... e elas me parecem também ter a mesma amizade que vc tinha. Você é uma mãezona!!

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  4. Valéria,

    Certa vez um amigo me pediu para opinar sobre uns textos que ele pretendia publicar. De imediato me vi com a responsabilidade incentivá-lo, ou não, a ingressar no mundo literário. Depois de ler os textos, pensei comigo mesma: se ele conseguir editar e publicar esse livro, qual o risco de desestimular alguém que esteja se iniciando no mundo da leitura? A resposta que me veio à cabeça fez com que o chamasse para uma conversa fraterna, mas verdadeira: era um risco muito grande! Já se passaram 15 anos e ele nunca mais falou no livro.
    Quando li pela primeira vez, meio que por acaso, um texto em que você relata a sua experiência de migrante, de cara me impressionou, ainda que o conteúdo não coadunasse com as minhas convicções. De lá pra cá tenho lido com atenção tudo que escreve e já te revelei que gosto dos seus escritos. Recentemente fui surpreendida com um texto onde relata a opinião do seu analista, ao que me pareceu, meio desestimulante. Confesso que fiquei triste com a possibilidade de você desistir do que imaginava ser um dos seus sonhos.
    Hoje, feliz da vida, volto a lhe dizer que tem muito talento e, se perseverar pode, sim, ter o seu espaço na literatura brasileira. Esse texto é lindo e me fez um bem enorme, porque me levou suavemente a um passado que eu nunca quis esquecer! Parabéns!

    Há braços,

    Lourdinha

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  5. Lourdinha,

    Hoje acordei perdida, há tempos busco um caminho para realizar algo, preciso fazer alguma diferença nesse mundo, nem que seja só um tantinho. E sempre me acho aquém, fico resistindo para não escrever pois não estudei o suficiente para isso e não sei de onde partir para tornar desse prazer uma profissão. E também não tenho encontrado ânimo para partir para outra coisa. Hoje orei, abri a Bíblia, pedi um sinal. Vim para o computador e encontro seu comentário, o primeiro e-mail da caixa. Me emocionou muito pelo momento e as palavras certas. Se eu conseguir levar pensamentos bons para as pessoas por alguns segundos pra mim já está valendo. Tenho que tentar antes de desistir. MUITO OBRIGADA!! E que você receba multiplicado por mil tudo de bom que expressa para as pessoas e que também alcance os seus sonhos mais profundos, você não imagina como isso foi importante pra mim. Saiba que se um dia sair este livrinho Incrivelmente falível, você estará lá.

    Há braços também,

    Val.

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  6. E em total sincronia meu amigo guru Cau Trigo me desejou esta manhã:
    "Que tenhas um lindo fim de semana Val! Voce é muito querida sabe?! Quero que voce expresse tudo de belo que voce possui dentro e realize os seus sonhos mais profundos nesta vida!"

    Inexplicavelmente lindo!

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  7. Valéria,

    Também me emocionou saber que te fiz bem. Isso significa dizer que, independente de quaisquer diferença que posamos ter, somos do BEM!
    Quando te sugeri perseverar no sonho de escrever um, dois, três... livros, posso te adiantar que tenho um exemplo de perseverânça na família, hoje reconhecido com um grande autor e recentemente empossado como membro da Academia Baiana de Letras: Luis Antônio Cajazeira Ramos. Posso te afirmar que ele não fez outra coisa senão perseverar no sonho. Com múltiplas habilidades e competências, tendo passado por pelo menos uma dezena de cursos na Universidade Federal da Bahia, de engenharia elétrica, medicina, agronomia, economia, engenharia civil a educação física, atualmente empresta a sua inteligência ao Banco Central do Brasil, mas se realiza mesmo é na literatura. Cae, como carinhosamente o chamamos, é o meu melhor exemplo de perseverança. Penso que ele alcançou ou está em vias de alcançar aquilo que deve ser o maior objetivo em nossas VIDAS: A FELICIDADE!

    Há braços,

    Lourdinha

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  8. Val,

    Que texto de beleza singular!
    É muito bom sermos atingidos por palavras que aparentam ter saído da nossa história direto para a sua história.
    Parabéns amiga por este dom especial de transmitir com simplicidade e emoção lembranças como esta!

    bjsss,
    Mel

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  9. Val,

    Você não tem ideia de como eu me orgulho de você minha amiga; do ser humano que você se tornou e da sensibilidade que você tem. Gracas aos sumérios isso tudo posse se materializa aqui, nesse blog que e muito mais incrível do que falível.
    Te amo!
    Dayse

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  10. Que lindo Mel e Day!
    Vera, Paulinha e Thai, meus amores, eu adoro escrever para vocês!

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  11. Val,
    sua riqueza de valores me faz voltar a ter esperança nas pessoas que me rodeiam.
    Esse dom que tão poucos possuem de tornar a vida lições de amor e respeito à valores tão perdidos nesse mundo perdido numa inversão de valores.
    Conviver com com esse seu tão puro e sincero coração deve ser uma benção!
    Muita inspiração pra você!
    Bjs
    Manu

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