29 outubro 2013

Reencontro com o ponto de partida



Estou participando de um curso de interpretação em Shakespeare com Harildo Déda, uma oportunidade de receber os valorosos ensinamentos deste mestre querido. Entrei meio sem saber o motivo, acho que foi porque Shakespeare com Harildo é sempre uma boa ideia, uma excelente desculpa para retomar o contato com textos tão ricos e com a dinâmica do teatro.

E hoje, depois de três meses de aulas, ou melhor, depois de anos, eu apresentei uma cena. E assim que terminou, após ver a reação dos poucos colegas presentes e principalmente o sorriso do mestre, me veio à cabeça um pensamento; como foi que eu consegui abrir mão desta emoção?
Me lembro bem. Sempre achei esta profissão dura demais no Brasil e principalmente na Bahia. Para fazer teatro aqui você não pode viver sem o teatro. Se não for assim, como explicar a perseverança dos atores em um clima de total instabilidade, onde não existe incentivos suficientes do governo nem educação para que  as pessoas conheçam o valor da cultura? Por conta disso as oportunidades são extremamente escassas e elas se tornam disputadas a tapas pelos mais fortes. São raros os que vencem, os que alcançam o trio fantástico do talento mais oportunidade e trabalho, os que conseguem viver de maneira confortável exclusivamente da arte. A maioria segue se equilibrando com outras fontes de renda em uma corda bamba com malabares de êxtases, dificuldades e incertezas. E os mais frágeis simplesmente não sobrevivem, ficam pelo caminho, deixando os sonhos pelo chão.
Esse foi o meu caso, aos dezenove anos engravidei e achei que não poderia mais brincar de ser atriz, que a insegurança da profissão não combinava com as responsabilidades de uma mãe, principalmente de uma mãe solteira. Tratei logo de me casar, ter mais filhos e investir mais na família, para reforçar a minha escolha. E nunca me arrependi, colho dia a dia os frutos dos filhos que criei como quis. O papel de mãe é de todos o que mais me dá sentido.
Só que eu conheci o teatro, eu me formei em uma escola de teatro. E o seu "bichinho" ficou aqui, adormecido, alimentado pelas peças e filmes que assistia, com a admiração pelos bravos colegas que perseveraram e disfarçado na escrita, esta linguagem "segura" que encontrei para expressar a minha emoção.
Esperando por uma oportunidade, mais possível agora com os filhos crescidos, que cada vez mais dispensam a minha companhia. Lembro-me de quando morei em Los Angeles, via na escola de dança das meninas os cartazes com os anúncios das audições acontecendo todos os dias, para todas as idades e perfis. Afinal, quantos canais de TV existem nos Estados Unidos? Uns cinquenta? E quantos estúdios e produtoras de cinema? E quantos teatros?
Aqui quem quer fazer TV ou cinema precisa ir pro eixo Rio/São Paulo e para subir no palco tem que partir para a luta, pra produção. E que luta! Tentei uma vez, ai que dureza. Tem que colocar na lei de incentivo, com tanta burocracia e lentidão, o dinheiro não sai, você coloca do seu para poder estrear no dia, da poupança ou no cartão porque você não tem, pede uns apoios, precisa lidar com tanta gente sem palavra e sem compromisso, as pessoas que você chama para participar muito cobram e pouco agregam e você ainda precisa manter o ânimo lá em cima de todos os que esperam por um belo resultado, já que você os convidou.
Tomei medo de inventar, de convidar e de produzir, fiquei esperando que alguém me convidasse,
tadinha. Mas ocorreu algo hoje em minha espera, aconteceu uma ceninha para algum público, aconteceu o teatro. O verso do soneto quatorze que apresentei nesta noite ainda ecoa em minha cabeça; "Que a verdade e a beleza darão frutos se em ti deixas de tanto reservar-te." Sem audições e convites ouço atentamente a este chamado de Shakespeare, do curso, do mestre, do teatro e da vida. Talvez seja a hora de deixar de me reservar e tentar de novo. Saber se a maturidade contará a favor desta verdade e beleza para que este dom, enfim, frutifique. Mostrar a cara e ver qual é, mesmo se, mesmo com, mesmo com todos os poréns. Deixar o bichinho virar um dragão e tomar conta de tudo, até eu enfim, como os outros, não querer nunca mais viver sem ele. Às vezes, precisamos voltar para o ponto de partida dos nossos sonhos, e para isso, é necessário gritar aos quatro ventos para atrairmos um bom time. Penso que desta forma, depois de dar vida à umas pessoas, eu poderei começar a dar vida a uns personagens. Acho que os filhos irão gostar disso.