04 maio 2014

A casa que morou em mim


Estou prestes a entregar uma casa que aluguei perto de uma mata. Começo a me despedir dos pássaros, dos besouros, das formigas e dos mosquitos que cheios de razão nunca se conformaram com todas essas construções na área deles. Aproveito esta fase final pra fazer uma super faxina, separar um monte de coisas pra dar e pra jogar fora, procurando, ao mesmo tempo, fazer aquela faxina interna.
Nesta noite de sábado choveu. Parei pra olhar a chuva e pra agradecer pelo tempo que me foi permitido viver aqui. Pela fase de recolhimento, por todas as noites de sábado em que era melhor estar aqui do que estar na rua, pelo silêncio, pela distância da casa pro centro da cidade, por todos os dias que vivi neste quarto e por tudo o que nele li, escrevi, orei e cresci.
Aproveitei que já era tarde e saí com a minha camisola velha de algodão na sacada. Vi o vento levar a chuva pra todos os lados sob a luz dos postes e com ela dançar uma dança meio melancólica. Pensei na serenata que um dia sonhei em ter ali mas que nunca veio. Em alguns amigos que gostaria de ter recebido mas que não vieram também. Depois me lembrei de todos os que vieram, de como foi bom, das suas vozes alegres que ecoavam com o som da água que caía sem parar no chão.
De repente subiu o cheiro conhecido da chuva e da terra. Lembrei-me que é a água que faz tudo florescer. Que ela limpa também o ar e deixa os dias muito mais bonitos. Que venha uma época de novos horizontes e novos desafios. Eu e a minha inquietude temos uma relação de tapas e beijos, mas de muito mais satisfação do que tudo. Ao mesmo tempo que detesto a inquietação que me tira o sono e não me deixa ver a chuva simplesmente pra ver a chuva, adoro a forma com que ela me empurra. Todas as vezes que chego no novo me sinto incrivelmente orgulhosa por ter tido a coragem de mudar.
Ao embalar os meus objetos e as minhas memórias, vejo que saio desta casa com excesso de bagagem. Mais coisas, pela oferta temporária de espaço, ah que ilusão, agora tenho que descartar um monte. Porém, principalmente, saio com mais experiências. Estas, por mais absurdo que pareça, são o que tenho de mais concreto, é o que levo pra onde for, até quando for preciso sair desta encarnação.
Levo as lembranças dos encontros, dos abraços e das risadas, as memórias das sopas de todos os dias com as crianças, levo os choros que me deixaram mais humana e mais forte, os sonhos que dormi e os que vivi, levo esse e outros textos que afloraram entre as cigarras e os sapos da mata.
É mais feliz quem sabe fechar os ciclos com gratidão e esperança. Isso é o mínimo que esta casa espera de mim depois de tudo que ela me ofereceu. Prometo então, quando a chuva e o outono passarem e eu estiver protegida por um outro teto, lembrar com muito carinho desta robusta senhora. Espero, com as mudanças das estações que estão por vir, com as mudanças de lugar e de situações, que eu saiba reciclar a mulher que eu já fui. Que eu me descarte, me acrescente, me embale e me transforme. Que ao entender que nada é pra sempre eu veja claramente que tudo é espetacular enquanto dura. É assim com o que a gente quiser, até com um momento solitário de chuva em uma noite de sábado em uma linda casa que foi totalmente minha por um tempo.



12 comentários:

  1. Ahhh! Como sao lindas as suas estorias! Sempre poesia pro meu coracao! LINDAAAAA!!!!!! Adoro voce, Val!!!

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    1. Thay!!! Que saudade de você, eu também te adoro linda!!! E adoro esse blog que me trouxe você e nos mantém juntas!! Não saia daí, eu preciso da sua companhia! Beijos!!!

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  2. Lindo texto. É tão bom quando o tempo nos deixa recordações boas. Seja feliz em seu novo lar, ele será uma página em branco para você escrever novas e lindas histórias. Beijo grande.

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    1. Obrigada Amanda! Que seja! Saio da mata para o mar, acho que vai ser sim uma boa transição! :)

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  3. Tenho prendido com a Cabala que ser grata é estar grávida do divino, assim seja!

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  4. Valéria:

    Como são importantes estes momentos que vc tem, de recolhimento e mergulhos dentro de sí....
    Momentos para perceber movimentos da Natureza e da essencia do tudo.
    Como é importante se dar essa oportunidade. O Universo agradece!

    Parabens.

    Everaldo Marcelo


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  5. ... cheiro da chuva no chão, alguns lugares e pessoas nos fazem senti o cheiro da terra, viver "o aqui". Obrigado por mais uma perola. Silvio Romero

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  6. Tem um ditado que diz (não me lembro de quem é agora): “Todos que passam na nossa vida, levam um pouco de nos e deixam um pouco de sim.”
    Acredito que assim seja a vida tb.
    A cada lugar que vamos, cada pessoa que conhecemos, ou que apenas observamos na rua, cada dia que temos o prazer de vivenciar com felicidade ou não, nos ensina algo e leva algo de nos.
    Cada casa que morei ficou com um pouco de mim e eu levei algo que aprendi, que vivi, um sorriso, uma lagrima, uma gargalhada. Essa é a graça da vida.
    A ultima casa que me “desfiz” (ainda não tive coragem de me desfazer por completo, porem não vou mais), levou muito de mim, levou um pedaço grande da minha vida, da minha infância, da minha adolescência, da minha felicidade, da minha vida, porem eu levei todas os grandes e melhores momentos da minha vida comigo, no meu coração, na minha alma, na minha essência, e nas minhas lembranças.
    A cada mudança levamos algo e deixamos algo.
    Sempre, sempre, sempre ... boa sorte Lela!!!!

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    1. Muito obrigada Rafinha, que comentário bacana, partilhando lembranças com tanta ternura e bem querer. Muito grata!!! Volte sempre viu? Beijos!!!

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