11 julho 2011

De cortinas fechadas


Rio de Janeiro, julho de 2011. Três primas se encontram em situação inédita para pegar um táxi para a visita. Aliás, dois taxis porque Debbie levou o Steve dela e eu levei o meu.

Destino: Avenida Atlântica, Ed. Joanes, apto 501. Casa do tio avô de 82 anos. Já se sabia que o tio não estava mais lembrando muito bem das coisas e que muito menos se lembraria de nós, mas fomos mesmo assim.

Chegamos às 15:45, quinze minutos antes do combinado. Subimos o elevador antigo, todo revestido em mogno com aquela grade que se fecha antes da porta.

Socorro abre a porta. Foi quem atendeu ao telefone e combinou o horário, é quem toma conta do tio, já trabalha na casa há 19 anos. Pede para sentarmos e aguardamos que ele já estaria vindo.

Desde os primeiros passos o apartamento nos impressionou; primeiro pela escuridão. Mesmo estando em uma tarde de inverno, não poderia estar assim. Cortinas pesadas na cor ocre vedavam quase todas as janelas. Parecia um bloqueio. Chegamos mais perto para desvendar o mistério que já sabíamos; do lado de lá a exuberância do mar da praia de Copacabana.

Apartamento enorme, com grandes e antigos sofás, todas as madeiras muito escuras, tapetes por toda parte. Várias pilhas de jornais velhos dobrados no chão. Olhava para os lados, via as outras salas mas não tive a menor vontade chegar lá. Na parede quadros sombrios retratando personagens hora com dor, hora com medo, muitas vezes sem rosto. Esculturas com as mesmas expressões. Fiquei imaginando que seriam quadros muito caros e se caso eu pudesse escolher um, qual seria. Não consegui, não queria olhar nunca mais para nenhum deles, eles me assustavam. Foquei a atenção em dois vasinhos vermelhos na mesa de centro.

Digo para as primas: - Você vão ver que ele só vai aparecer às quatro em ponto. As primas riem. Rapidamente emendo em um comentário infame:

- Mas que coisa, todos falavam da Martha que casou com o Tio, que poderia ser por interesse sendo ela muito mais nova do que ele, acabou que ela morreu e ele está aí até hoje. Isso bem baixo para nenhum daqueles bois da cara preta nos quadros ouvir e depois irem correndo contar pra ele.

Dito e certo. As quatro em ponto chega o Tio Otávio, de camisa de manga comprida e casaco cinza, calça meia e sapatos pretos. A última vez que o vi eu tinha dez anos e acho que de lá para cá ele não mudou muita coisa. Comecei a pensar que de velho para mais velho nós não mudamos muito.

Ele chegou sorrindo e cumprimentando a todos mesmo sem ter a menor idéia de quem se tratava. Ficou logo impressionado com o tamanho do Steve, o marido da Debbie. Ao o apresentarmos como americano, ele ficou satisfeito em ter um assunto e começou a falar sobre a sua experiência nos EUA. Contou detalhes sobre a viagem que fez para lá na década de 50, sobre a segregação racial da época e suas experiências como um aventureiro.

No primeiro silêncio fiz questão de garantir o cumprimento da minha missão. Falei:
- Tio, Essa é a Debbie, filha da Heloisa, essa é a Isa, filha da Heliane e eu sou a Valéria, filha da Edilce,  nós somos netas da Stella, as nossas mães mandaram um abração pro senhor.

Ela tascou uma risada sem graça e disse: - Mas vocês cresceram demais sô! Em um jeito bem mineiro-simpático de dizer: ainda não tenho a melhor idéia!

Isa resolveu investir: Sou filha da Heliane e do Stoessel, que era seu amigo, o senhor gostava de tomar uns wiskinhos com ele... Ela fala e depois cochicha pra mim - Ele vai lembrar melhor do meu pai, ele gostava muito dele. E volta para o tio: - Hein, Stoessel, o senhor se lembra?

Ele diz: Ahhhh!!! E muda de assunto.

Nesse momento Socorro entra na sala e nos convida para um café na copa. Achei bem chique esse momento, certamente estamos perdendo muito dos encantos de antigamente. Já estou planejando um resgate, vou fazer com a próxima visita; conversar um ambiente com ela e depois ter alguém para nos convidar para uma mesa surpresa em outro lugar.

Na mesa do tio tinha café, leite, pães, manteiga, frios e bolo. Nesse momento senti muita saudade de minha avó (a irmã dele) e desejei ter a presença dela, da minha mãe e das minhas quatro tias.

O lanche estava ótimo, todos fizemos questão de provar uma coisinha mesmo tendo acabado de almoçar. Eu que não tomo café tomei quase a xícara toda. Mas para colocar o tom da vida como ela é, passamos todo o tempo ouvindo barulhos de reforma no apartamento vizinho. Comentei:

- Como é chato reforma né tio? Lá no meu prédio estamos na mesma.

- É, mas tem que fazer né uai? Eu me lembro resolvi comprar esse apartamento porque estava muito barato, mas estava acabado. Eu mexi nele todo, fiz uma reforma imensa. Me lembro que quando fui para a primeira reunião de condomínio cheguei já me apresentando: - Eu sou o barulhento!

Acho que foi a primeira e a única que ele fez, pensei. Eu precisaria derrubar esse e fazer outro para vir morar aqui. Isso pensando bem baixo e sorrindo para não deixar o pensamento escapar para o rosto.

O tio continuou falando de seu passado, com muito mais ênfase nas décadas de 50/60. Disse que muito quis sair de Belo Horizonte para estudar na escola de Belas Artes do Rio de Janeiro, mas que o seu irmão mais velho o repeliu dizendo que esse não era um curso de valor. Que ele teria sim que vir para a cidade para tomar conta de uma unidade do laboratório da família.

Assim ele fez e desde então passou a pintar sem técnica e só com sentimento todos aqueles quadros para mim do boi boi boi da cara preta.

Após o café, pedimos para tirar uma foto e ele prontamente disse sim, ajeitando o cabelo e ficando de pé para se posicionar entre as três filhas de quem já esqueceu e netas de quem já não se lembra.

Ao acabarmos o café o tio nos acompanhou à porta e no caminho acendeu uma luz, o que me deu uma enorme alegria. E assim, com mais claridade e com um abraço nos despedimos daquele tio simpático. Ele demonstrou ter gostado muito da nossa visita.

Agradecemos a Socorro pelo lanche e por cuidar tão bem dele, já que não há um filho ou um neto por perto. Não havia mais a mulher, nem nenhuma graça no passado recente.

Descemos o mais rápido possível o elevador de mogno e saímos quase saltitantes do prédio. Pela sensação de consciência tranqüila com a visita, por compartilharmos aquilo juntas, pelo ar puro daquele início de noite e por avistar todo aquele calçadão de Copacabana nos convidando a viver. 

4 comentários:

  1. Me lembro do ap nos tempos aureos, com a tia viva muito conversadeira e animada, da colecao de revistas do Asterix que eu adorava; A sala principal sempre foi escura. O meu local preferido era a varanda com uma bela vista para a praia; Gostava da comida que nao tinha cebola, pois o tio detestava e eu tambem. Ele nos levava para a praia na barra no seu belo carro, e depois para um maravilhoso restaurante de frutos do mar. Bons tempos...

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  2. Eu também tenho muitas lembranças de lá. Na maioria muito boas. Lembro dele me levando para um passeio de carro pelo centro do Rio, falando de todos aqueles prédios históricos, lembro de um reveillon muito engraçado, com a mesa farta e os sofás cheios de velhinhos cochilando, lembro da comida boa da tia que era mais uma amiga, maluca e engraçada, de Rico se sentindo tão à vontade que ia dar uma cochiladinha no quarto para digerir tanta comilança... fico triste com a vida de um homem solitário...

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  3. Oh Valzinha, senti uma peninha dele, tadinho! Que bom que voces foram visita-lo! Que bom mesmo!!! Li um comentario acima que me trouxe muitas lembrancas que eu havia me esquecido: As revistas do Asterix...meu pai e meu irmao mais velho eram fascinados por elas, lol :)

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