Até aí tudo bem, encontramos lá crianças sorridentes e limpinhas. Conheço dois dos quatro responsáveis pelo lugar, são profissionais liberais que não contam com ajuda dos orgãos públicos, eles bravamente matam um leão por dia para colocar a comida no prato de 100 crianças de 3 a 5 anos que passam o dia, onde estudam e fazem as refeições. Além disso eles entregam mingau e sopa para as famílias. Sem comentários. Eu me sinto uma ameba perto de gente assim. Estes são os meus heróis.
Hoje pela primeira vez resolvi aceitar o convite para descer a rua e ver de onde vem aquelas crianças. A Gal, coordenadora da creche, nos acompanhou, caso contrário poderia ser perigoso. Desci um barranco me equilibrando, estava entrando literalmente em um grande buraco. Fui me aproximando dos barracos. Dei de cara com várias crianças pequenas decalças e seminuas e outras com 15 e 16 anos com filhos no colo.
A Gal pede para uma das mulheres para que entremos. Ela diz que sim, escancarando a sua realidade na esperança de que possamos ajudá-la. A frente do barraco era delimitado com uma cerca de pedaços velhos de sobra de madeirite. Passamos por uma área aberta com forte mau cheiro onde vimos panelas, roupas penduradas, sucata e pedaços de brinquedo. Alí onde é feita a comida e também são feitas as necessidades. No chão de terra batida uma água escura escorria por todos os lados. No lado esquerdo do pequeno terreno mais tapumes, pedaços de telha e papelão se amontoavam para formar um cômodo. Uma cama, uma geladeira pequena completamente enferrujada com um prato com resto de sopa em cima. Tanto a geladeira como a pequena televisão eram ligadas por gambiarras malfeitas que atravessavam o lugar. No chão mais terra, mais lama e dois colchonetes finos estirados em cima de um papelão. Nesse lugar mora uma mãe, um pai e seis filhos.
Perguntei a mãe se ela recebia o bolsa escola, o programa do governo que beneficia as famílias por cada criança matriculada na escola. Ela disse que não, que tentou duas vezes e não conseguiu. Fui perguntando as outras mães nas outras casas e a resposta era a mesma. Seja por ignorância das pessoas que precisam, seja pela burocracia do programa, por falta de comunicação, de acesso, de interesse, de competência, de honestidade, ou do que for, o fato é que o benefício ainda não chega naquela invasão em Canabrava.
Me veio até uma idéia, acho que intermediar os que precisam com o que é oferecido seria de grande valia. São tantas as formas de ajudar...
As pessoas de lá sobrevivem do grande lixão. Isso, eles catam o que eu e você descartamos. Eles vendem o que é possível para reciclagem. Os que podem trabalham na cooperativa. Outros juntam e vendem coisas para o ferro velho. E muitos catam para si.
Tentei disfarçar, sorrir e brincar com as crianças que pediam sem parar que Steve tirasse fotos delas. Mas tudo em mim embrulhava por dentro. Meu estômago, meu útero e meu coração.
Às vezes me chocava com fotos de crianças feridas em guerras ou desnutridas na África e ignorava a miséria do nosso lado. Eu só precisei de meia hora para chegar lá partindo do meu grande e confortável apartamento.
Você aí deve estar se perguntando: E o Steve, o que achou? Ficou impressionado. Com toda aquela pobreza e com as crianças, que ele achou as mais carinhosas que já viu. Tentei explicar a diferença entre carinhoso de ter muito carinho para dar e carinhoso por carência e pela falta de tudo.
Na nossa última conversa sobre voluntariado ele me disse que contribui com um orgão de proteção aos gofinhos.
GOLFINHOS, entenderam? Eu fiquei besta. Isso é algo surreal pra mim, como se fosse mesmo coisa de outro mundo. Gosto muito deles, dos golfinhos. Mas nunca imaginei doar algum dinheiro para salvá-los. Não com as nossas crianças nesta situação.
Hoje estou chorando com cada pedacinho de mim. Mas foi muito importante ter ido. Ainda vou levar meus filhos e acho que todos deveriam ir. Temos que viver, trabalhar, pensar e dormir com conhecimento da existência da invasão de Canabrava. Para sair desse estado de alienação, letargia e demência. Para transformarmos o futuro, seja da forma que for e tirarmos os nossos irmãos de lá.
Sem dúvidas, atravessar aquela barreira de tapumes velhos foi uma das piores experiências que já tive, mas que ao contrário das outras, não devo esquecer.
Retrato da desvalorização do ser humano, devemos sim fazer alguma coisa. Vamos nessa Fofa!!! Bjs e estamos aí.
ResponderExcluirÉ realmente impressionante, fiquei assim tb da primeira vez q tive uma experiência parecida... O pior é saber q Canabrava é apenas um dos vários lugares em que podemos encontrar condições semelhantes ou ainda piores somente em Salvador, quiçá no Brasil...
ResponderExcluirVal, vc se superando a cada dia! Em um mundo capitalista como o que nós vivemos poucos tem a coragem de sair do seu estado de repouso para presenciar ou “ajudar “tamanha indignação, essa é uma realidade não só lá em Canabrava, sendo q,” hoje esta bem melhor lá”... Conheço de perto a situação.Deus te abençoe!!!
ResponderExcluirEu posso imaginar a dor que vc sentiu, Val. Nao eh pra menos! Diante de situacoes como esta, nos deparamos com a enorme diferenca entre as nossas realidades, e a voz da consciencia despara em alto som, entre perguntas e constatacoes. O que estamos fazendo para ajudar o proximo? Estamos fazendo o suficiente? Da pra reclamar da vida diante da triste realidade de tantas pessoas? Realmente nao da, ne?
ResponderExcluirNão podemos mesmo ignorar essa realidade. Adoro a frase "seja você a mudança que quer ver no mundo" de Gandhi. Beijos queridas!
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