23 fevereiro 2011

A correspondência

Ganhei um presente ontem. Passei a noite me deliciando com um texto que Philip (um primo Incrível) mandou pra mim. É um texto de cinco páginas que vale a pena ler na íntegra. Se estiver com muita pressa deixe pra ler até este post IF depois. Mas se tiver um tempinho, venha ver estes trechos. Eu não ousei alterar uma vírgula, apenas separei as linhas que mais me tocaram e coloquei pequenos comments. Quero saber se isso agrada a vocês. Esse texto especialmente diz muito sobre este meu momento IF e sobre a função deste bloguito. Enjoy it! :)

A Correspondência
André Comte-Sponville
Texto escrito para o catálogo oficial da exposição “Plis d’excellence”,
Museu do Correio, Paris, 1994

Por que se escreve uma carta? Porque não se pode falar nem calar. A correspondência nasce dessa dupla impossibilidade, que ela supera e da qual se nutre. Entre fala e silêncio. Entre comunicação e solidão.

Sempre me pego escrevendo coisas que não falo, mas que me imploram para sair.

Um vivente dirige-se a outro vivente, e não para os séculos dos séculos (como certos escritores, nem sempre os melhores, em seus livros), mas para compartilhar alguma coisa, um acontecimento, ou um pensamento, uma emoção ou um sorriso, muitas vezes quase nada e esse é o essencial de nossas vidas, para compartilhar essa pobreza que somos, que vivemos, que nos faz e desfaz, antes que a morte nos pegue, para não renunciar, enquanto respiramos e sejam quais forem os quilômetros que nos separam, à doçura de viver juntos, em todo caso ao mesmo tempo, à doçura de compartilhar e de amar. Contemporâneos da mesma eternidade, que é hoje. Passantes da mesma passagem, que é o mundo.

Escrevo para vocês, meus contemporâneos leitores Incríveis, sobre o meu mundo aqui e agora.

O que mais amei; eu escrevo para isso!
Escrevo-te para dizer-te que te amo, ou que penso em ti, que me alegro, sim, de ser teu contemporâneo, de habitar o mesmo mundo, o mesmo tempo, de só estar separado de ti pelo espaço, não pelo coração, não pelo pensamento, não pela morte. Partir é morrer um pouco. Escrever é viver mais.

... apenas sinto.

É a eternidade de viver, mas sem véus, mas preservada, como uma garrafa lançada no oceano do tempo, como um pedaço do presente no infinito do futuro. As cartas de amor durarão mais tempo, muito amiúde, do que o amor. Elas sobreviverão a ele. Estarão aqui se se quiser, quando o amor estiver morto.

Mesmo quando a Val não estiver mais aqui, eu estarei. 

Mas como escrever se eu não sou escritora?
Porque uma carta é uma obra, seja ela qual for, é tentador fazer dela uma obra de arte, que valeria por si mesma. Nem todos são poetas, romancistas, artistas. Mas todos escrevem cartas, pelo menos todos aqueles que sabem escrever, e nunca se exprimirá o suficiente a miséria daqueles que não sabem, daqueles que são prisioneiros da fala ou do silêncio, do instante, do frente a frente. Que infelicidade não poder escrever cartas de amor, não poder escrever aos amigos, aos filhos, não poder lê-los, ser prisioneiro da ausência ou da separação! A escrita é um luxo, a escrita é uma felicidade, a escrita é uma liberdade. Que a injustiça venha intrometer-se aí, como de fato acontece, torna a injustiça ainda mais odiosa.

Foi por isso então que trabalhei num projeto de alfabetização de adultos? Me reconheço neste valor dado pelo autor à escrita. Liberdade!

Depois, amo, na correspondência, que cada qual possa procurar nela o pequeno pedaço de si que não mente. Pois pode-se mentir numa carta como na fala, e talvez com mais facilidade. Mas isso é trair a linguagem, mas isso é trair a escrita, mas isso é trair o outro, e a si. As verdadeiras cartas são as cartas verdadeiras. É pelo que valem. É pelo que são tocantes. O vocabulário conta menos do que a sinceridade. O talento, menos do que o amor e a coragem.

Lindo!!!

O estilo não é o que importa. A correção não é o que importa. Uma carta vale mormente por sua intimidade, por sua doçura, pelo que contém de amor ou de segredo. Todo mundo pode escrever uma, pelo menos todos os que sabem escrever. Basta ser verdadeiro. Basta escrever o mais perto possível da vida como ela é, tal como parece, tal como passa e permanece, nossa pobre e pequena vida de mortais, como à espera de sabe-se lá o que, ou de sabe-se lá demais, como que à espera de si mesma, como que privada de si, e no entanto viva, tão viva, tão frágil, tão pungente de fraqueza e de banalidade, tão desamparada, tão desarmada, tão humildemente única e comum, como um milagre sempre malogrado, sempre recomeçado, nossa pobre vida de terrenos, nalguma parte do tempo, nalguma parte do universo, nossa pobre vida de humanos, sempre exposta ao amor e ao sofrimento, à solidão e ao encontro, e isso forma tão poucas coisas que cabe, ou quase, dentro de um envelope…Nada com que fazer uma história, nada com que fazer um romance. Justo o tempo de viver um pouco, de amar um pouco, de escrever um pouco – justo o tempo de enviar algumas cartas… Escrevo-te para te dizer que te amo e que vou morrer, para dizer que estou vivo, vivo ainda, e muito feliz de ser teu amigo, e muito feliz de ser teu amante. “Na medida em que somos sozinhos, o amor e a morte se aproximam.” Isso, que foi escrito numa carta, diz a verdade de todas.

(Suspiro)

Nossas cartas se parecem conosco, desde que o queiramos um pouco, e mesmo, às vezes, quando não o queremos. Frágeis como nós. Irrisórias como nós. Bela por vezes. Pobres e preciosas, corriqueiras e singulares, quase sempre. Um pouco de nossa alma introduziu-se ali, na pouca espessura de um envelope. Um pouco de nossa vida, na loucura do mundo. Um pouco do nosso amor, no deserto das cidades.

Frágeis como nós. Irrisórias como nós. Falíveis como nós...

Por que se escreve uma carta? para habitarmos juntos a essencial solidão, a essencial separação, a essencial e comum fragilidade. Para descrever o tempo que está fazendo, o tempo que está passando. Para contar o que nos tornamos, o que somos, o que esperamos. Para exprimir a distância, sem a suprimir. O silêncio, sem o corromper. O eu, sem fechar nele. Isso não substitui a fala. Isso não substitui nada. E nada, tampouco, o substitui: as verdadeiras cartas, aquelas que gostamos de receber, são gratuitas e insubstituíveis, como a vida, como o amor, como um presente e são um presente. “Não é nada, sou eu”, escreve-me um amigo, “venho dizer-te que te amo muito, muito…” Não é nada, ou quase nada, contudo um pedaço do mundo e da alma, transmitido como que por milagre, tão leve na mão, tão profundo no coração, tão próximo da grande distância."

"Não é nada, sou eu." Uma Incrível falível garota sensível que encontrou quem leia as suas cartas. Cartas feitas para dizer enquanto é tempo do quanto ela ama. Para sempre.


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